O Brasil é o quinto país em que a população mais se automedica no mundo. De acordo com o Ministério da Saúde, em cinco anos, quase 60 mil internações foram provocadas por intoxicação com medicamentos. Uma nova regra, porém, busca reverter essa realidade. A exemplo de países como Canadá, Inglaterra e Austrália, o Conselho Federal de Farmácia regulamentou a prescrição farmacêutica (Resolução nº 586/2013).
O objetivo da medida é que o farmacêutico utilize seu conhecimento especializado para ser cada vez mais um agente ativo de orientação da população, atuando exatamente no momento em que as pessoas têm acesso aos medicamentos.
Em entrevista ao portal da Anfarmag, o presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Walter Jorge João, comenta a decisão e explica o que muda a partir de agora nas farmácias. Para ele, “a prescrição é uma das atribuições clínicas do farmacêutico e essa decisão reforça a missão de zelar pelo bem-estar”.
Anfarmag: De modo geral, o que a prescrição farmacêutica significa?
Walter João: Os estabelecimentos farmacêuticos, pela capilaridade de sua distribuição geográfica, e o farmacêutico, pela sua competência e disponibilidade, representam, muitas vezes, a primeira possibilidade de acesso das pessoas ao cuidado em saúde, especialmente para as famílias com piores condições econômicas.
A prescrição farmacêutica é uma das atribuições clínicas do farmacêutico e deve ser realizada com base nas necessidades de saúde do paciente. A resolução nº586/13 (CFF) encerra a concepção de prescrição somente como a ação de recomendar algo ao paciente. Tal recomendação pode incluir a seleção de opção terapêutica, a oferta de serviços farmacêuticos ou o encaminhamento a outros profissionais ou serviços de saúde.
A: Porque o assunto tem causado tanta polêmica?
WJ: Creio que é preciso conhecer a proposta e todas as suas especificidades. A prescrição não é um ato exclusivo do médico. Existe a prescrição odontológica, a prescrição do fisioterapeuta, do psicólogo, do enfermeiro, do nutricionista e, agora, a prescrição do farmacêutico. A prescrição é definida como o conjunto de ações documentadas relativas ao cuidado à saúde, visando à promoção, proteção e recuperação da saúde e a prevenção de doenças e outros problemas relacionados.
Ao instituir a prescrição farmacêutica, o Conselho Federal de Farmácia apenas busca que o farmacêutico cumpra o papel social para o qual está capacitado: auxiliar no tratamento do paciente, em especial, daquele que depende dos serviços públicos de saúde.
Não se trata de substituir o médico ou qualquer profissional da saúde, mas de atuar em cooperação, evitando a automedicação e encaminhando o paciente caso seu problema não seja um transtorno menor.
A: O que muda de fato para o público?
WJ: A resolução contempla a prescrição de medicamentos de venda livre que são usados sem qualquer orientação na maioria das vezes. Nesses casos, trata-se do combate à automedicação e aos riscos de intoxicação por medicamentos.
O ato de prescrever será precedido de uma avaliação do quadro exposto pelo paciente e, a partir daí, o farmacêutico, com sua capacidade técnica, poderá indicar o melhor medicamento ou mesmo encaminhar o doente ao médico, se ele apresentar um quadro que exija esse cuidado.
É bom lembrar que a indicação de tratamento utilizando medicamentos isentos de prescrição já ocorre, hoje, em farmácias e drogarias do todo o Brasil. A medida adotada pelo CFF fará com que esse ato seja realizado com muito mais cautela e responsabilidade, trazendo maior segurança ao paciente.
A: Quais os benefícios aos consumidores?
WJ: A expectativa do CFF é que a normativa cause um impacto positivo na saúde das pessoas, repercutindo nos sistemas público e privado, e combata a automedicação. O Brasil é o quinto país em que a população mais se automedica no mundo. As consequências vão desde a intoxicação por medicamentos, internações que poderiam ser evitadas, aumento da resistência bacteriana, e até a morte, em alguns casos.
A: Vai ser preciso alguma adaptação dos farmacêuticos?
WJ: O farmacêutico é autoridade em medicamentos. Durante sua formação ele cursa disciplinas voltadas para o desenvolvimento, indicação, mecanismos de ação, doses, características farmacocinéticas e condições seguras de uso dos medicamentos. Conhece os efeitos, reações adversas e mecanismos de ação de todas as drogas terapêuticas, incluindo as tarjadas (de prescrição médica).
Está qualificado para a prescrição de medicamentos sem tarja, de venda livre, utilizados para o tratamento de transtornos menores, de que trata a resolução do CFF. São problemas de saúde que, hoje, são erroneamente tratados mediante “prescrição” de vizinhos, de amigos e inclusive de artistas na TV.
Entretanto, recomendo que o farmacêutico esteja, sempre, em busca de capacitação. Para tanto, o CFF criou o Portal Farmacêutico Clínico – um espaço virtual para o debate, troca de experiências e acesso a publicações sobre atuação clínica do farmacêutico. E para 2014, o CFF está desenvolvendo um curso de especialização na área clínica, com foco na prescrição farmacêutica.
A: Qual o impacto dessa medida para o segmento magistral (mesmo medicamentos que compramos sem receita nas drogarias precisam de receita na farmácia de manipulação. Se o farmacêutico será o prescritor, a tendência é cair essa exigência para o segmento magistral?)
WJ: Creio que não. De acordo com a resolução nº467/2007 (que define, regulamenta e estabelece as atribuições e competências do farmacêutico na manipulação de medicamentos), no exercício da profissão farmacêutica, sem prejuízo de outorga legal já conferida, é de competência privativa do farmacêutico, todo o processo de manipulação magistral e, oficinal, de medicamentos e de todos os produtos farmacêuticos. E o Artigo 4º, Capítulo I, diz que “compete ao farmacêutico, quando no exercício da profissão na farmácia com manipulação magistral: manipular, dispensar e comercializar medicamentos isentos de prescrição, bem como cosméticos e outros produtos farmacêuticos magistrais, independente da apresentação da prescrição” (médica).
Debate antigo
A raiz da prescrição farmacêutica está na Resolução nº 290 de 26/04/1996 (Revogada pela Resolução nº 417/04) que prova o Código de Ética Farmacêutica. O capítulo III diz que “é dever do farmacêutico: aconselhar e prescrever medicamentos de livre dispensação, nos limites da atenção primária à saúde”.
Já em setembro de 2009, o CFF recebeu propostas de Conselhos Regionais de Farmácia que definiam, regulamentavam e estabeleciam as atribuições e competências do farmacêutico na “indicação” farmacêutica. Nessas propostas, a “indicação” farmacêutica estava voltada ao tratamento de um transtorno menor ou nos limites da atenção básica à saúde.
Em 2010, o CFF disponibilizou a Consulta Pública nº 01/2010, mas o texto ainda tratava de “indicação” farmacêutica. Das 110 contribuições recebidas, 70{0289a8e79bb3d4f377d22b993092c2a903fc5d0a4d364ba5b00f0c885530b46e} eram favoráveis à aprovação.
Em junho de 2012, o CFF realizou a I Oficina Sobre Serviços Farmacêuticos em Farmácias Comunitárias para debater as práticas profissionais do farmacêutico; propor estratégias e alinhar conceitos. Na Oficina, pela primeira vez, oficialmente, o termo usado nos debates foi “prescrição farmacêutica”.
Um ano depois, em junho de 2013, com a proposta resultante da Oficina, o CFF disponibilizou a Consulta Pública 06/2013. Ficou então evidente que a prescrição farmacêutica estava além da seleção de medicamentos.
De acordo com o texto final, o farmacêutico pode realizar a prescrição de medicamentos e outros produtos com finalidade terapêutica, cuja dispensação não exija prescrição médica, incluindo medicamentos industrializados e preparações magistrais – alopáticos ou dinamizados – plantas medicinais, drogas vegetais e outras categorias ou relações de medicamentos que venham a ser aprovadas pelo órgão sanitário federal para prescrição do farmacêutico.
Valorizou-se, assim, a prescrição como ato e não como serviço.
A partir daí, o CFF apoiou a realização de debates sobre o tema em diferentes estados da federação com o objetivo de esclarecer dúvidas sobre a elaboração do texto da resolução visando à melhoria da proposta. Após analisar 229 manifestações encaminhadas em resposta à Consulta Pública e dos debates realizados nos estados, o CFF elaborou, votou, aprovou e publicou a Resolução nº 586/2013, que dispõe sobre a prescrição farmacêutica.